Publicações

O mundo cabe em um apartamento

O mundo cabe em um apartamento

por Tamara

Pra ouvir o que minha tia dizia precisei chegar mais perto. Quando tomei café com o Papa João Paulo II, ah sim, meu amigo Alceu, no casamento não sei de quem, a nossa Revolução com outro nome que não era esse dos jornais de hoje… As fotos na mesa comprovavam os encontros. Nomes compostos, datas, lugares precisos. Tudo minha tia contava com detalhes de 90 anos nas costas e mil nos joelhos cansados, que tanto percorreram carpetes-cor-de-vinho. Mas pera tia, eu li no livro tal que…, Bobagem! Eu estava lá e não foi nada disso! Pare de acreditar nos historiadores que não leem além do feijão com arroz.

A brisa salgada de Ipanema entrava pela fresta e fazia as cortinas me chamarem pra sair. No Rio, gosto de turistar, e fico tirando foto do corcovado e vivo no Polis Sucos, vizinho do prédio. E eu podia ouvir o barulho dos liquidificadores. Quando ela terminar de falar eu desço, pensei como se assunto com tia Marina fosse coisa que acabasse.

Minha tia não saía, não. Desde a cadeira de rodas, cansou e não vai mais saber a praia a uma quadra dali. Como podia? Tão perto do mar e vizinha da lanchonete, não descer nem pra tomar fruta do conde?

Duas moças se revezam pra acompanhá-la na sua agenda de atividades. Jussara traz o pão e o jornal que ela lê todo-dia além de livros, revistas, documentos. Faz palavras cruzadas, recebe visitas, anda o corredor de 5m ida volta ida volta ida e senta na cama uffff. Lurdinha corta em fatias finas o pão do dia anterior, e põe na assadeira pra minha tia comer dormido e torrado, no café do dia seguinte.

Me pergunta da praia, como vai o novo museu velho, se é tudo que falaram na TV. Me pergunta da estação do metrô que decerto não vai usar. Anda bem, anda bem, um pouco confusa, mas deu certo. Mesmo tudo tendo visto mas quase nada na verdade, agora ela se contenta com a opinião dos jornalistas dos quais descrê. Uma sobrinha a chamou de Enciclopédia. Ofendida, respondeu na hora que não. Que se fosse dar pra ela um apelido, Google seria mais adequado.

O Rio foi ficando grande demais. E depois de conhecer tantas cidades, terminou construindo a própria, dentro do pequeno apartamento.

Não gosta muito de sair na rua, acho que cansa, ou só perdeu a vontade. O Rio não é mais aquilo… A distância confunde a memória também. E o Rio da televisão não é o mesmo das histórias que, de tanto a gente contar, acaba fazendo ter sido.

É difícil entendê-la. Difícil para quem ainda viveu pouco e acha que viveu muita coisa. Difícil pra quem anda um mundo procurando telas, entender quem viveu sem elas. Há pessoas que já sabem que nada sabem. Outras, saberão.

Teve de tirar um dente outro dia. Posto que não sai de casa por nem por nada, foi lá mesmo, no quarto, na cama, na mesa de cabeceira que o dentista ergueu o centro cirúrgico pra arrancar o molar esquerdo. Um dente a menos, um dente a mais, tanto tanto tanto faz. Toda infraestrutura necessária vai até ela, toda informação, toda (quase toda) gente, e o saber ela tem de monte até então. Tem diferença, afinal? Entre sair e ficar em casa? E tem, minha tia, tem graça?

Saber, e antes de voltar pra São Paulo dei tchau pra Jussara, e vi na camiseta dela escrito alguma coisa. Foi a sua tia que me deu, Tamara! Toda feliz ela esticou a blusa para eu ler “Conhecimento é liberdade”.