Publicações

pantanal estrada

Aos berros

- Tamara

Uma das grandes frustrações da minha vida é não saber tocar um instrumento. Nem um. Mentira, eu aprendi com meu pai a tocar berrante – não sei se conta como instrumento porque é algo que se leva duas semanas pra aprender a tirar alguma coisa, não mais – e também porque nunca vi tocar berrante no municipal, na Sala São Paulo, em show de bandas da moda nem nada – mas eu diria que faz um som bonito e combina com música – que é uma forma de teletransporte.

Nem Deus sabe quantos amores e desilusões eu já vivi nesta vida de casa-onibus-escola. Meia culpa do pop que só fala disso e meia culpa de mim que critico orrores (com o mesmo, pra ficar pior) mas só me desloco ouvindo pop. Cabe ao berrante dar a dignidade que uma vida pasteurizada suplica – aquele sabor de estranheza, de capim, carandá e porteira, de um doce de abóbora que você tinha certeza que seria de um sabor mas quando enfiou na boca não era bem, mas era.

Acho que meus amigos não sabem que eu toco isso – tirando aqueles que me viram tocar num sarau da escola, no dia em que me senti tão pressionada por fazer aquilo na frente de todo mundo que não consegui fazer o sopro durar mais que 3 segundos. Mas vou te contar que eu quase faria isso da vida, supondo que eu fosse ilha.

Pensando bem, faltou eu dizer o que um berrante é; é um negócio lindo, cê tem que ver, feito de chifres de boi um juntado no outro por uma tira latitudinal de couro, numa ordem que começa com diâmetro pequeno – pra por a boca – e termina grande – de onde sai um som bem bonito que o pessoal da fazenda usa pra dar sinais e chamar o gado e o gado vem na hora, porque também gosta do som que faz. Acho.

Será que pra fazer isso eles cortam o chifre do bicho vivo? Não deve ser. Mas engraçado que se chama o boi com partes do corpo dele próprio. Quer dizer, não se chama, se berra. Taí a lindeza da coisa que ferve por existir e arranca o ar de quem a pari: ele só funciona com devoção.

Talvez berrante não seja mesmo instrumento por isso: ele serve pra alguma coisa. E talvez seja melhor assim, pra que não se afaste da sua matriz, que é o bicho, e da sua indissociável relação com o contexto de quem dele tira serviço. De qualquer forma, sendo instrumento musical ou não, é arte. E isso, bem ou mal, eu sei tocar.

GOSTOU? AQUI TEM MAIS